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Por Cláudio Eduardo Rodrigues

 

 

O que é irmandade?

 

Vivemos num tempo em que as palavras perderam a força de sua expressão e se tornaram vazias de significado. Neste sentido, compreende-se que se faz necessário uma compreensão mais profunda, vivencial das palavras que usamos no cotidiano.

Assim, como no Congado se procura reviver as raízes e promover o reencontro com os antepassados, este breve histórico da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Uberlândia, também pretende recuperar as raízes e o significado das palavras que envolve a mais antiga instituição legalmente constituída da cidade Uberlândia e que, apesar das diversas transformações do tempo e do espaço, mantém-se viva e atuante.

O termo irmandade pode ser entendido como laço de intimidade e proximidade que as pessoas estabelecem entre si a partir de dadas condições de maternidade, consangüinidade e ou étnicas, ou seja, por fatores de familiaridade biológica, geográfica, cultural, dentre tantas outras.

Por outro lado, irmandade também pode ser compreendida como associação de pessoas que se reúnem independente da existência daquelas ligações descritas acima. O laço que as une é espiritual ou o interesse e objetivos comuns, podendo ter cunho religioso ou não.

Em ambos os sentidos, percebe-se que ao longo da história, as irmandades desempenharam e desempenham papéis importantíssimos na orientação da vida pessoal e coletiva dos indivíduos. Elas são meios pelas quais se procura resguardar as tradições e, conseqüentemente, sustentar sua identidade cultural e étnica

Ao cumprir seu papel de mantenedora das tradições e da cultura de um grupo, as irmandades também adquirem um papel social, visto que trazem em si a necessidade de comprometimento das pessoas com as demais. Nelas se compreende que é necessário harmonizar as relações entre as pessoas, preparar e inseri-las na sociedade em geral, bem como promover melhores condições de vida para os irmãos e irmãs.

Exemplo clássico dessa prática pode-se ser encontrado nos relatos da Irmandade de Santa Efigênia de Ouro Preto, liderada por Chico Rei. Tal Irmandade de negros libertos tinha como compromisso angariar fundos para comprar a liberdade de irmãos negros que ainda se encontravam sob jugo da escravidão e de lhes dar uma ascendência social.

 

 

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberlândia

 

Ao contextualizar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Uberlândia podem ser identificados três grandes momentos históricos: a) aquele em que não há uma associação e organização institucional entre as pessoas devotas do Rosário de Maria e/ou Congadeiras; b) associativo-institucional entre devotos do Rosário de Maria e Congadeiros; c) associativo-institucional entre os diversos Ternos de Congo, Marujos, Marinheiros, Catupés e Moçambiques e devotos do Rosário de Maria.

 

 

I - Período não institucional - 1874 – 1916

 

A partir das pesquisas de historiadores, considera-se que as primeiras festividades de Congado em Uberlândia – antiga Nossa Senhora do Carmo e São Sebastião da Barra do Uberabinha - teriam ocorrido em 1874, promovidas pelas negras e negros que viviam na condição de escravos nas terras da família dos Pereiras e por outros afro-descendentes advindos de outras regiões de Minas Gerais, em especial do Desemboque, Sacramento, Cruzeiro da Fortaleza, Patrocínio.

Ainda na época da escravidão, havia a necessidade de que os senhores de escravos autorizassem a realização das festividades de Congado, bem como de liberação dos escravos para participarem da mesma. Certamente, tal licença era concedida pelo fato de constituir-se numa festa voltada para o “culto e louvor Católico a Nossa Senhora do Rosário”.

Dentre as diversas pessoas negras envolvidas na organização e realização das festividades de Congado e de louvor a Nossa Senhora do Rosário, destaca se a pessoa de Manoel Francisco do Nascimento. O mesmo, segundo atas de períodos posteriores, desempenhou papel central no processo de consolidação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberlândia, enquanto associação ligada à Igreja Católica Apostólica Romana em 1916.

Segundo relatos coletados, em seus primórdios, as festividades de Congado eram realizadas junto a uma árvore de óleo localizada próximo do Posto da Matinha, na BR 050 – atuais bairros Tibery e Custódio Pereira. Posteriormente, o Congado passou a ser realizado em uma igrejinha localizada no bairro Fundinho dedicada ao Rosário de Maria.

Esses registros históricos, materiais e/ ou memoriais, permitem concluir que a realização das festividades de Congado exigia a associação de pessoas e um mínimo de organização própria.

Sem receber qualquer tipo de apoio do poder público, essa organização mínima de negros e negras para a festa do Congado e do louvor a Nossa Senhora do Rosário, pode ser considerada a causa direta da criação e instituição da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Uberlândia.

Assim, antes de ser associação institucional religiosa e civil criada pela associação de pessoas, a Irmandade foi e, é percepção e expressão de familiaridade biológica, geográfica, cultural, tendo em vista que seus membros são, como afirma o poeta e cantor Zé Vicente: “irmãos no sangue e na sina”.

Em resumo, sua origem a Irmandade sucedeu pelo laço racial, geográfico, cultural, étnico estabelecido pela mãe África, assim como pela necessidade de se enfrentar os desafios comuns encontrados para se manter a identidade, as tradições e a memória dos antepassados no exílio nas Américas.

 

 

II - Primeiro período institucional da Irmandade – 1916 - 2002

 

Na antiga Uberabinha, paralela às festividades de Congado e do louvor a Nossa Senhora do Rosário promovida negros, havia outra festa dedicada ao Rosário de Maria. Geralmente realizada na primeira semana de outubro. A mesma era organizada por uma associação composta apenas por pessoas brancas, denominada Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. O que demarca a divisão social e racial que predominava na Uberabinha do séc. passado.

Dentre seus membros estava o Sr. Arlindo Teixeira. Ele ocupava cargo na Comissão Procuradora e recomendou, em 1891, a transferência da Igreja de Nossa Senhora do Rosário da Praça Doutor Duarte para a Praça Rui Barbosa, visto que a mesma encontrava-se abandonada.

Por outro lado, em 1916, aquelas pessoas negras, também devotas do Rosário de Maria e que A festejavam por meio do Congado, organizaram e constituíram a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberabinha, solicitando ao bispo Eduardo Duarte de Uberaba - então sede eclesiástica de Uberabinha – em 06 de Junho de 1916, a aprovação do Compromisso da Irmandade – Estatuto – e a nomeação do Cônego Cesar Borges Pereira promotor ad hoc da Irmandade.

Aprovada pela autoridade eclesiástica em 12 de Junho de 1916, a primeira Mesa Administrativa – Diretoria - da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberabinha foi eleita por aclamação em 01 de Novembro de 1916, sendo a seção realizada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário que se tornou sede da confraria.

Com mandatos anuais, voltados para a preparação das festividades de Congado em louvor a Nossa Senhora do Rosário – ainda sem qualquer tipo de apoio do poder público - a primeira Mesa Administrativa foi assim composta: Mordomo ou Diretor: Firmino José Martins Negro; Assistência ou Auxiliares do Mordomo: Amaro Antônio Bernade; Manoel Francisco do Nascimento; Tesoureiro: Theophilo Francisco do Nascimento; Procurador: Jorge Francisco Rodrigues; Secretário: Edmundo José Bernardes; Zelador: Gaspar da Silva Machado.

Em 03 de Março de 1929, o Sr. Manoel Francisco do Nascimento foi eleito Mordomo da Irmandade, sendo Assistentes os seus filhos: Elias Francisco do Nascimento, Theophilo Francisco do Nascimento. O mesmo, ao que indica as poucas atas registradas, foi reeleito por diversas vezes até 1959.

Em 1936, Elias Francisco do Nascimento - filho do Sr. Manoel Francisco do Nascimento - foi eleito presidente da Irmandade, permanecendo à frente da mesma até seu falecimento em 1975. Sua gestão é reconhecida por muitas pessoas. O que pode ser verificado pela expressão de saudades que se sente pela sua pessoa e pelas festividades dirigidas por ele.

Neste intervalo de tempo e por ironia do destino, aquela Irmandade composta por brancos foi dissolvida e a responsabilidade por zelar da Igreja de Nossa Senhora do Rosário passou a cargo da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberlândia, que permanece até os dias atuais, de modo que é considerada a mais antiga associação do Município de Uberlândia.

Com o falecimento do Sr. Elias, seu filho Deny Nascimento assumiu em 1975 o cargo de Presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberlândia com a responsabilidade de manter vivos os princípios que nortearam aquela congregação de negros e negras, bem como para a realização das festividades do Congado e o louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Somente sob o mandato do Sr. Deny Nascimento a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito foi reconhecida como de utilidade pública e as festividades de Congado em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito incentivadas pelo poder público, recebendo apoio financeiro e logístico do mesmo.

Nesse sentido, pode-se perceber que a partir da oficialização e reconhecimento eclesiástico, irmandade ganhou novos contornos, sem perder os anteriores. Ela tornou-se instituição a partir do laço espiritual e objetivo comum de pessoas negras, a saber: promover a glória de Deus e honra de S. S. Virgem, sob título do Rosário e a sanctificação e salvação das almas (Artigo 1, Compromisso, Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberabinha, 1916), bem como de manter vivo o patrimônio cultural herdado dos ancestrais africanos e afro-brasileiros.

 

 

III – Segundo período institucional da Irmandade – 2002

 

Como bem afirma GABARRA, “A Irmandade N.S. do Rosário não é o Congado, ela é a oficialização da união entre os diversos grupos de Congado. Irmandades e ou confrarias têm a função primeira de agrupar pessoas de uma mesma cultura” (2004).

Todavia, essa noção só pode ser entendida a partir da determinação do Novo Código Civil Brasileiro de 2002, que exigiu uma nova organização das associações.

Se nos períodos anteriores, a Irmandade era espaço de congregação de irmãos “no sangue e na sina” e, posteriormente, também lugar religioso de acolhimento de irmãos e irmãs devotas do Rosário de Maria, na condição de membros honorários e efetivos. A partir de 2002, ela adquire a condição de associação civil.

Atualmente ela é composta por sócios coletivos, a saber: os Ternos de Congo, Marujos, Marinheiros, Catupés e Moçambiques. Muito embora, seu Estatuto preveja a associação de pessoas na qualidade de sócios individuais e / ou honorários.

Os Ternos constituem personalidade jurídica própria, embora subordinados a muitos daqueles princípios estabelecidos no Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens de Cor de Uberabinha, tais como a participação na Missa Dominical.

Nessa perspectiva, compete aos Ternos cumprir os preceitos estabelecidos pela tradição do Congado de Uberlândia e o Estatuto e os Regimentos da Irmandade e das Festividades em louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Enquanto associação, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário adquiriu outro caráter: representar os diversos Ternos em sua totalidade.

Se no passado, a ausência de apoio do poder público para as festividades e outras atividades da Irmandade não era empecilho para a sua realização, hoje ela é cobrada pelos Ternos no sentido da ampliação daqueles recursos e logística que o poder público oferece.

Nesse sentido, a Irmandade vive o risco de perder ou se distanciar dos objetivos originais que levaram os membros a se reunirem, a saber: I– promover as tradições religiosas associadas às devoções populares a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito; II – preservar e incentivar as práticas do Congado, do Moçambique e outras modalidades de danças e/ou tradições folclóricas e culturais afro-brasileiras; III – envidar todos os esforços para manutenção e conservação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

Por isso, pode-se concluir que as exigências legais do Novo Código Civil demarcam um novo e desafiante período histórico da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, tendo em vista que a mesma corre o risco de ver perdidos os princípios que nortearam a sua consolidação como agregadora de pessoas com raízes e fé comuns, tornando-se apenas representante ou porta-voz dos interesses particulares de seus sócios coletivos.

 

Referências bibliográficas

 

GABARRA, Larissa Oliveira. A dança da Tradição: congado em Uberlândia – MG, século XX. 2004. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de História, UFU / Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2004.

 

LUFT, Lya Fett. Dicionário escolar Luft da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2005.


 

REZENDE, Creuza (coord.). Festas Populares: Um olhar de criança. Gráfica Sabe, Uberlândia, 1999.

 

SANTOS, Eneida Pereira dos, MAHFOUD, Miguel. Irmandades de Negros: construção da identidade de seus velhos em Minas Gerais. Disponível em < http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos03/santos01.htm. Acesso em 18 de Maio de 2008.

 

VICENTE, Zé. Baião das comunidades. In: CEBI. Cantar a Vida: cancioneiro do CEBI. 4 ed. São Leopoldo: CEBI, 2000.

Histórico completo da Irmandade de

N. S. do Rosário e São Benedito de Uberlândia

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